7 de setembro de 2009

Parte I - Do Alto da Bela-Vista

Aos olhos comuns, o espaço em que se ambienta esta história, genericamente, poderia ser qualquer um desses vários submundos que a cidade conhece e faz questão de esquecer. E até pelo dizer do poeta, eu-narrador, “é tirar raça, cor e credo/ e genté gente, minha gente”. Mas, hoje, dispenso o verso que não me compraz. Qual sentido de me ater a outro lugar, se é só no Alto da Bela-Vista, onde a vista é nada bela, que nos mora Dona Graça, mãe da menina Isabela?
O Alto da Bela-Vista é um bairro relativamente novo, fora povoado tem volta de um século por uns parentes de Dona Graça, ex-lavradores da baixada – assim o digo porque, naquela época, todo mundo se dava por parente, e se não era mesmo, era aderente, que no final das contas fazia a mesma coisa: metia o dedo no caldo do compadre. O fato é que, por essa data de fundação (de fundamento necessidade), o Alto da Bela-Vista, mais pra só um terrenão do outro lado da cidade, ainda bem atendia às necessidades imperiosas daquela gente - comportava um quintalzinho dois pés de mandioca e meia dúzia de galinhas.
O problema foi que, quando a parentada toda veio se acomodando pelas bandas do Alto, trouxe mulher, prole e mala cheia de discurso pronto. A situação por lá tava braba, dotô, aqui fazemo de tudo um tudo, é só mandar. Os primeiros até deram sorte. Os doutores da cidade, realmente, precisavam de uns “faz tudo” e, também, de umas meninas pra cuidar da casa, da cozinha, das crianças... Só que não tinha era doutor pra todo mundo. Mesmo assim, foi chegando parente que só Deus dá conta de dizer como fez pra repartir n-vezes os quintaizinhos. Pra piorar, assim como Maria das Graças, bebê futura Dona mãe de Isabela, pegou a moda de ir nascendo tantas outras Marias – cada vez menos virgens que a Nossa Senhora - que desse processo todo, o Alto ficou meio apertado.
E digo GRAÇAS! aquela velharada da fundação já estar enterrada e de osso branco. Imagine o desgosto: depois de terem dito bela a vista daquele outro lado da cidade, passaram o tempo, a cidade velha e seus doutores, e o Alto ainda é ‘outro lado da cidade’. Nem mais a vista inspira - daquela época dantes, ficaram só as ruelas com pavimento de chão de terra pedregulhada, sequer motivo de se orgulhar. Os quintaizinhos, como disse, foram se repartindo tanto que o Alto virou um amontoado de casebres espaço de nada, quase caindo um por cima do outro. E se, ao leitor, não for pedir demais, me poupe de uma extensa descrição: acrescente falta, de um tudo.
Era tanta gente pra multiplicar por problema que até Deus se complicava. Se continuasse aquela coisa de todo mundo aparentado, não tardava descer mandamento dizendo pecado tio dar a bença a sobrinho e afilhado – ora, no fim ,o palavreado é sempre o “Deus te abençoe”. Pra sorte e descanso do Divino (não atribua a ele, pelo amor!), foram nascendo uns meninos meio ‘mal-educados’, que de aderentes tinham só a própria vontade e que parentes consideravam os de casa, e olhe lá. Isabela nasceu mais ou menos por aí. Por família, ela e Dona Graça, dona Graça e ela.

7 comentários:

Jéssica Mendes disse...

Um quê de Jorge Amado, um quê de João Cabral de Melo Neto e muito de Paulo di Linharez, amém.

Prosa poética é algo realmente difícil e tu vens com tua malemolência jogar na cara dos mortais que faz e com maestria, ainda por cima!

Mas é muito saliente mesmo, marrapá!

disse...

Nem sei comentar do que não é comum pra mim. xD
Mas realmente é de um estilo clássico de grandes autores.
Como a Jéssica disse; joga na cara dos mortais tua habilidade. ahsushsushau²
Eu viajei pra essa situação. Nunca para de escrever.

camiLamoRim. disse...

Disse que vinha e vim!
Só pra confirmar o que sempre disse: talento e fluência é contigo mesmo!
Maravilhoso texto! :*

Ticiana disse...

'metia o dedo no caldo do compadre. '
ótima expressão, ótimo texto.

Mellina disse...

como disse Jéssica: jogou mesmo. saliente você, hein.

Fóssil disse...

Muito bom, Paulo. Como tu disseste, poderia ser qualquer lugar. Que o digam todas as Marias das Graças e suas Isabelas. Teu texto é uma janela para elas.

Anônimo disse...

Pô cara, estou ansioso esperando próximo capítulo...é a sequencia... venhaaaaaaaaaa. Tá valendo...