29 de março de 2009

Olho-gordo

Quanta comida em cada lixeira!
Quanto desperdício de vitaminas e carboidratos, proteínas etc!
Aposto que as lixeiras de uma só cidade do meu país
Encheriam a barriga de muita gente faminta na África.
E porque eu não sigo modas e nem sou mentiroso
E nem tenho empatia para pensar ou sentir como e pelos outros,
A partir de hoje,
Passo mal,
Vomito,
Mas não deixo sobrar um grão de arroz no meu prato.


Solitude.

Rapunzel de cabelo curto

Bicho-do-mato
De goiaba
Bicho pardo, bicho sujo
Bicho pão

No pescoço da menina
Magricela
Que está lá na janela
Esperando a procissão

A mãe da santa
Acompanha a romaria
Pinta e borda todo dia
Enquanto o pai lá no vagão

Limpa o pó da cabeceira
E também da prateleira
Do bolso e da carteira
Demodè da estação

E a donzela
Com um lenço no pescoço
Menos carne e mais osso
Cansou de esperar

Fechou sua janela
Caiu na vida, apagou vela
Sem estudo ou passarela
Foi pra esquina trabalhar

A mãe da quenga
Acompanha a romaria
Ri e chora todo dia
Enquanto o pai lá no caixão

Volta ao pó da prateleira
Sete palmos e cartucheira
Que usou na sexta-feira
Dia da demissão

E o idiota ri e goza
Finge que sente
Mente que chora
E não pára de escrever

Até onde vai a travessia?
No jornal, na poesia
Um idiota, todo dia
Não faz nada enquanto lê


Cláudio Martins.

7 de março de 2009

Drama de um carro mil da periferia de São Luís

Antes esse chacoalho fosse
turbulência de avião.
O buraco aqui é mais embaixo.
Melhor dizendo,
os buracos estão aqui embaixo.

Chego até a sentir pena
do meu carro mil.

Coitado.

Nunca fui bom motorista e
agora faço rali
no asfalto.

Que culpa tem se o amortecedor não é Cofap?
Que culpa tem de rodar no Cohatrac?



Paulo Di Linharez.

6 de março de 2009

Reflexões acerca de um homem que anda de chapéu de palha na rua

Sob o sol escaldante das três-da-tarde anda o andarilho.
Vagabundo de chapéu de palha e livro aberto nas mãos.
Ele lê.
E sobre as páginas caem gotas de suor.
Gotas de suor que rolam de sua testa ao queixo para, por fim, desabar sobre o papel.
E o andarilho anda.
E habilmente ignora os fatos
E os olhares que são voltados a ele.
Por quê?
Porque sim.
‘Porque sim’ não é resposta.
O andarilho só anda.
E vai andando por não ter dinheiro para pagar a passagem do seu ônibus.
Gastou tudo no chapéu.
Valeu a pena?
'Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.'
Ou não.
Ninguém sabe.
Eu vi o andarilho chegar onde queria chegar.
Suado, cansado, sujo, com sede e com fome.
O andarilho chegou onde queria chegar...
Sim, isso nem o Ninguém que sabe pode negar.


Solitude.

5 de março de 2009

Maranhense é gente

Maranhense
Ludovicense
Da casca
Do ovo
Da galinha
Que come
Minhoca
Que é comida
Pelo galo
Com crista
Sem crista
Que é comida
Por nós
Fascistas
Com cristo
Sem cristo
Matando pra viver
Pra comer
Por prazer.

Galinha que vem do fundo
Do quintal
De lama
De cimento
Ou de terra batida
Do forno
Ou do fogão
Frita ou cozida
Do beco
Da rua
Da esquina
Da avenida
Ou do galeto do Pingão.

Com sangue
Sem sangue
Farofa
Coca-cola
É o almoço
De hoje
De amanhã
De muita gente
Que quer comer
Mas não pode
Porque a galinha
Não é de graça
A galinha
Não faz graça
A galinha
Não custa caro
Pra mim
Pra ti
Pra fulano
Pra cicrano
Mas pra alguém
Que não tem
Um centavo
Uma moeda
Que não tem
Dois calções
Duas camisas
Um chuveiro
E que fede
O fedor
Do suor
Dos esgotos
Da miséria
Da pobreza
Das ruas
De São Luís do Maranhão.

Minha São Luís do Maranhão
Da gente
Mais rica
Que o presidente
Mais rica
Que muita gente
Que compra
Uma galinha
Duas galinhas
Duas mil galinhas
Sem esforço
Sem coçar
O bolso
o sovaco
o cu.

Minha São Luís do Maranhão
Do mar
Dos portugueses
Franceses
Holandeses
Dos índios
Caçados
Torturados
Explorados
escravizados
Dos negros
Caçados
Torturados
Explorados
Escravizados
Pelo branco
Que é gente
Como toda a gente
Que come
Como a gente
Farinha
Que bebe
Cachaça
Na Praia-grande
Na feira
Cachaça
Do bar do seu Batista.

Minha São Luís do Maranhão
Do homem macho
Do homem qualira
Do homem homem.

De toda a gente
Que come
Que fode
Que dorme
Que caga
Que sente.

Da gente gorda
Magra
Pela riqueza
Pobreza
Pela gula
Culpa
Culpa
Dos vermes
Da sujeira
Da doença
Do povo
Das praças
Das calçadas
Da ruas
Das avenidas
Da câmara
Dos tribunais
Dos casarões
Culpados
Pelos culpados
Ladrões
Inocentes
Vítimas
Vitimando
Homens
Mulheres
Pessoas
Vitimados
Por gente
Que acha
Ser mais
Que gente
Que a própria gente
Nossa gente
Da nossa terra
Terra.




São Luís
Do maranhão
Do Brasil
Do céu
Das coberturas
Dos edifícios
No calhau
Na litorânea
Do inferno
Das bocas-de-fumo
Dos becos
De faca
Navalha
Revolver
Porrada
Em gente
Que trabalha
E que é menos que a gente
Que acha
Ser mais que a gente.

São Luís surda
Do surdo
Do mudo
Do surdo-mudo
Na Deodoro
Na rua grande
No caiçara.

Minha São Luís do Maranhão
Que não é minha
É da gente
Que vive
Que morre
Que mata
Que a mata
Que se mata
Que fala
Que ouve
Que cala
E me ofende.


Minha São Luís do Maranhão
Da gente da gente
Da gente
Não
Não da gente.


Solitude.

Santo de casa

Ele queria importar
algo que fosse made in USA,
que não lembrasse esse jeito de cá,
que não lembrasse esse povo daqui.

Podia até imitar
um sotaque tipo carioquês,
que não falasse "rapá, marrapá",
que não cheirasse a arroz-de-cuxá.

Adoça o seu paladar
cuma espécie que não é daqui
pois as espécies que dão aculá...
Ah, são as espécies de lá.

São muitos anos de atraso, desamor, Bigodão.
O que há de ser de nós, filhos do Maranhão?



Paulo Di Linharez.


Texto com a colaboração de Rômulo (Espeto) Solitude