15 de agosto de 2009

delírio em prosa

A miséria nunca morreu. Está viva, arquejando numa laje de favela sob o sol do meio-dia, debruçando-se sobre papelão no chão da esquina e debaixo das pontes e viadutos. Está nas palafitas do rio Anil: engole nossos dejetos e deles se alimenta. Nas avenidas, corrói carnes e ossos e nos apresenta rubra a verdade lancinante nos corpos dos enfermos. Os hospitais estão lotados. E agora? Que outro tratamento procurar senão a medicina do Caos? E assim mendigos se expõem aos nossos olhos atônitos e rolam em cima de nossos medos e nossas angústias, sob os cuidados duma natureza cruel, que os consome para que por fim dêem lugar a outros. A miséria é imortal, infinita. Em seu ciclo de desgraças perpetua-se ao final dos tempos, quando nem mesmo os deuses sobreviverão. Não há regras, leis, ética ou moral para a miséria. Tudo é válido. Sua fome é cega: a fim de alimentar-se, não vê rios ou muralhas que sejam intransponíveis e, contudo, vê a nós, base de sua dieta, alimento preferido da podridão e da nefasta putrefação de nós mesmos. E, dessa forma, vem a nós. Vem carregada de desejo irrefreável, incontrolável, desejo que os homens prometem saciar e, não obstante, jamais saciarão. Sob suas mordidas, seus arranhões e grunhidos, nos arrastamos e subimos uns nos outros, todos lutando pela sobrevivência numa selva que há muito deixou de ser de pedra para ser de labuta humilhante, homicídio, roubo... Mas não, não tardaremos a nos perder entre nossos próprios corpos estendidos. Os caminhos cessaram as bifurcações e todas as saídas estão entupidas pelas fezes arrancadas com sangue dos intestinos. Não nos sujamos. E por isso não nos livramos dos males que nos assolam. A miséria nunca morreu. A miséria é imortal. A miséria perpetua-se num ciclo infinito. Sua sina é viver por entre os homens, e a sina dos homens é viver entre a miséria. O mundo fede nossa fome, nossa sede, nosso delírio de carne e de sangue. O mundo fede porque nós o fizemos feder. Nos envolvemos em pecados e os sete pecados capitais são apenas a entrada de um grande jantar: o prato principal será servido, e aí veremos a grandiosidade dos gigantes esquecidos. Nossa busca impetuosa pelos prazeres há de nos trair. No mundo dos hedonistas o mendigo na rua é deleite. As catástrofes não nos devem alarmar. O mundo sustenta-se com suas leis. Nós somos os inquilinos e o aluguel não está pago: estamos prestes a sermos expulsos e, mesmo assim, continuamos pomposos e não abrimos mão de nossa volúpia mais que exagerada. Esqueçam todas as leis naturais. Esqueçam o mundo e os ambientalistas com sua ladainha de salve o planeta. Salvem-se enquanto é tempo, se já não for tarde demais. Cuidem de suas crias e de suas casas, joguem fora as chaminés das fábricas e ateiem fogo nos carros não pelo planeta, mas pela pele que reveste o corpo funesto da humanidade dissolvida em desgraça. Salvem-se porque o mundo está salvo com a nossa miséria. Nós, apenas nós perecemos e desvanecemo-nos nas fumaças dos canos de descarga e das queimadas nas florestas. Inocentem as divindades. Somos nós as vítimas e os únicos culpados pelos crimes que agora nos assassinam.

4 comentários:

Mellina disse...

putz, muito bom, meu. sensibilidade transpirada.

Celso Andrade disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Celso Andrade disse...

muito bom isso aquí!!!

seguirei esse blog, aproveitando deixo o endereço do meu..
http://pocosdemim.blogspot.com/

abraço

gazzbi disse...

Terrorismo Poético puro, puro, tu sabe que gostei.